Ele sempre foi sociável, mas agora se isola. Aquela brincadeira preferida perdeu a graça. O passeio, que antes era o ponto alto do dia, virou motivo de resistência.
Quando o comportamento do pet muda, o primeiro pensamento de muitos tutores ainda é que o animal está “manhoso”, “de mau humor” ou “com ciúmes”. Mas por trás dessa leitura apressada pode haver um alerta mais sério, e negligenciar esse sinal pode agravar o problema.
Para Luiza Cervenka, terapeuta comportamental de cães e gatos, a mudança de comportamento é uma sentinela. “É um aviso muito claro de que algo não está bem. Pode ser dor, mal-estar, desconforto, até um formigamento. Jamais devemos desconsiderar ou achar que vai passar sozinho. Esperar o dia seguinte pode fazer o pet sofrer mais e até dificultar o tratamento”, alerta.
Segundo ela, o comportamento é a primeira forma de comunicação do animal, e a dor, muitas vezes, não se manifesta de forma óbvia. “Veterinários que avaliam apenas se o animal chora ou tenta morder durante a palpação podem não perceber os pequenos sinais. Um lamber de focinho, a rigidez ao toque e o tensionamento do corpo já podem indicar dor. E na clínica, o cão ou o gato tende a esconder ainda mais o que sente. Por isso, a escuta do tutor é fundamental”, explica.
Um estudo conduzido pela Universidade de Lincoln, no Reino Unido, reforça essa observação. A pesquisa identificou que até 82% dos cães encaminhados por comportamentos problemáticos apresentavam alguma condição dolorosa, ortopédica, gastrointestinal ou dermatológica. Mudanças de humor, como reações inesperadas diante de visitas, barulhos ou objetos, podem ter origem em quadros de dor crônica muitas vezes invisíveis. “Aquele cachorro que de repente começa a destruir objetos, morder portas, vassouras, ou passa a se isolar, pode estar com dor. Inclusive, comportamentos como montar na perna ou virar o lixo podem indicar desconforto físico e não um ‘mau comportamento’ como se imagina”, afirma Luiza.
Essas alterações também impactam diretamente a saúde emocional de quem cuida. Segundo Thiago M. Fidalgo, psiquiatra e professor do Departamento de Psiquiatria da Unifesp, o sofrimento dos pets reverbera com força nos tutores. Ele explica que, ao ver o animal em dor ou mal-estar, muitos desenvolvem sintomas de ansiedade, tristeza, culpa e até depressão, não apenas por empatia, mas também pela insegurança sobre o futuro e pela sensação de impotência.
Em casos em que o pet exige cuidados contínuos, esse processo pode evoluir para o chamado “estresse do cuidador”, expressão originada nos anos 1980 para descrever o desgaste físico e emocional vivido por familiares de pacientes com doenças crônicas, e que também pode se aplicar ao contexto pet. O professor destaca que reservar tempo para o autocuidado, manter uma rotina de sono adequada, praticar atividades físicas e cultivar momentos de lazer sem o pet são atitudes importantes para preservar o equilíbrio emocional. E quando os sintomas se tornam mais intensos, a busca por apoio psicológico ou psiquiátrico é essencial.
Esse impacto reforça a importância de reconhecer a dor crônica dos pets como um fator que exige atenção multidisciplinar, envolvendo não apenas médicos veterinários, mas também profissionais da psicologia, fisioterapia, nutrição, medicina humana e educação. Cada mudança de comportamento, quando interpretada de forma isolada, pode parecer inofensiva, mas em conjunto pode sinalizar um problema mais amplo, que exige escuta qualificada e abordagem integrada. É justamente nesse ponto que os profissionais da saúde e da educação podem abrir um espaço de discussão e atuação conjunta, promovendo uma visão mais abrangente da saúde, que considere as dimensões físicas, emocionais e relacionais da convivência com os animais.
O conceito está no cerne da abordagem conhecida como Saúde Única (One Health), que reconhece a interdependência entre a saúde humana, animal e ambiental. Estudos internacionais, como o publicado por Destoumieux-Garzón e colaboradores na revista Frontiers in Veterinary Science, que analisaram os desdobramentos do conceito One Health ao longo de uma década, já defendem a ampliação desse olhar para além das zoonoses, incluindo os aspectos sociais e emocionais que surgem da convivência entre humanos e animais. Quando um pet adoece, não é apenas seu corpo que sofre, mas também o entorno em que vive. Promover uma escuta mais sensível à dor dos animais é também um passo em direção a comunidades mais saudáveis e integradas.
A recomendação, segundo Luiza Cervenka, é observar o pet de perto. “Sono excessivo, inapetência, vômitos ocasionais, irritabilidade depois da creche, resistência ao toque e destruição de objetos. Tudo isso pode ser sinal de dor. O tutor conhece seu animal como ninguém. Se algo mudou, é porque há algo acontecendo”.
Como psicóloga especializada em saúde mental no setor petvet, observo diariamente o quanto os sinais silenciosos de dor são negligenciados e como isso afeta o bem-estar animal e o equilíbrio emocional do cuidador. Em busca de respostas que nem sempre estão nos exames ou diagnósticos imediatos, muitos tutores acabam consultando diversos especialistas. No entanto, muitas vezes a chave está em uma escuta mais ativa, na paciência e no tempo necessário de adaptação à nova condição de saúde do pet. Esses desafios cotidianos podem gerar frustração, culpa e sofrimento, especialmente quando há ruído na comunicação entre pet e tutor.
Uma escuta qualificada, tanto do corpo do pet quanto das emoções de quem cuida, pode fazer toda a diferença. Identificar e respeitar esses sinais é também uma forma de cuidado com o pet e com quem o ama, e pode ser o início de um vínculo mais consciente, sensível e ético com os animais que escolhemos amar e acompanhar. Enfim, quando aprendemos a escutar a dor do outro, mesmo quando ela não é dita em palavras, também aprendemos sobre empatia, presença e respeito.
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