As enchentes que voltaram a atingir o Rio Grande do Sul em junho revelam, mais uma vez, a complexidade da resposta a desastres no Brasil — e a maturidade crescente dos grupos da medicina veterinária, que se consolidaram como atores fundamentais no manejo da crise.
Em diversas regiões do país, especialmente onde os eventos climáticos se repetem com frequência, profissionais da saúde animal têm se organizado de forma técnica e articulada. Grupos operacionais bem preparados, com experiência prática e protocolos de ação, atuam com agilidade e responsabilidade, se apresentando formalmente à cadeia de comando e buscando integração com a estrutura oficial de resposta. Trata-se de um avanço concreto, sustentado por comprometimento técnico, formação continuada e cooperação entre profissionais.
No entanto, a presença qualificada desses grupos em campo não pode ser confundida com a existência de uma política pública nacional consolidada. Ainda faltam diretrizes federais claras que reconheçam o papel da medicina veterinária como eixo estratégico nas fases de prevenção, resposta e recuperação. Em muitos estados e municípios, a atuação desses profissionais continua dependendo de articulações locais, convocações emergenciais ou acordos pontuais — sem previsibilidade, financiamento adequado ou incorporação plena nos planos intersetoriais de desastre.
Essa lacuna não é técnica. É institucional.
A atuação veterinária em contextos de crise envolve uma complexidade que ultrapassa a clínica. Os profissionais lidam com triagem em campo, gestão de zoonoses, biossegurança, transporte e abrigo temporário de animais, rastreamento de vínculos familiares e mediação com tutores em sofrimento. Tudo isso sob condições muitas vezes adversas, com logística reduzida e necessidade de decisões rápidas em ambientes instáveis.
Além das exigências técnicas, há impactos ocupacionais significativos. Veterinários que atuam em desastres enfrentam sobrecarga física, dilemas éticos, luto recorrente e exposição emocional prolongada. Embora grupos organizados se apoiem mutuamente e desenvolvam boas práticas de cuidado coletivo, o suporte institucional é inconsistente. Faltam políticas que garantam segurança, amparo psicológico e reconhecimento formal da atividade como essencial.
A médica-veterinária Esther Espejo, especializada em perícias e medicina veterinária de desastres, destaca que a presença do profissional junto à Defesa Civil é, muitas vezes, o fator decisivo para viabilizar evacuações. Em muitos casos, pessoas se recusam a deixar suas casas por não terem para onde levar seus animais. O veterinário atua nesse ponto de intersecção: organiza o transporte, orienta os abrigos, propõe soluções para bichos que precisam permanecer – e ajuda a proteger vidas humanas e não humanas com medidas simples, mas técnicas, como manter animais soltos em locais elevados e seguros.
Apesar disso, como Esther alerta, ainda há confusão institucional sobre o papel do veterinário em desastres. Em alguns estados, sua atuação é valorizada pelas corporações de bombeiros. Em outros, é confundida com o trabalho voluntarista de ONGs ou protetores, o que prejudica o reconhecimento técnico e dificulta a integração com os sistemas de comando. Dentro do próprio sistema dos Conselhos de Medicina Veterinária, há resistência: a comissão paulista dedicada ao tema foi encerrada, evidenciando a fragilidade dessa pauta mesmo dentro da categoria.
O que se busca não é mais espaço simbólico, mas formalização: vagas públicas para médicos-veterinários nas corporações de bombeiros, equipes técnicas atuando em parceria com a Defesa Civil, previsão orçamentária, treinamentos contínuos e respaldo jurídico. Sem isso, a estrutura segue sendo sustentada pelo esforço dos próprios profissionais — e isso tem limites.
Também é preciso ampliar o entendimento de desastre. Eventos como o tombamento de caminhões com carga viva – com animais de produção sendo transportados – são frequentes e exigem resposta especializada. No entanto, concessionárias de rodovias ainda operam sem equipes veterinárias preparadas. Há um campo inteiro de atuação que permanece invisível, mesmo diante da recorrência dos fatos.
Por fim, há uma base essencial que segue negligenciada: prevenção e educação. Como lembra Esther, poucos profissionais – e poucos cidadãos – sabem se vivem em áreas de risco, quais tipos de desastres são mais prováveis em sua região, ou como deveriam se preparar minimamente para essas situações. Essa ausência de preparo territorial básico compromete todas as fases da resposta.
Há um paradoxo evidente: temos capacidade instalada no campo, mas seguimos sem estrutura política no topo. Enquanto os profissionais da medicina veterinária se preparam, atuam e constroem redes de ação, o sistema público de gestão de crises não os incorpora como deveria. O resultado é um desequilíbrio que se repete a cada evento climático: resposta qualificada sustentada por esforço localizado, sem articulação sistêmica.
Reconhecer essa urgência não significa desvalorizar o que já está sendo feito. Ao contrário: é justamente o avanço técnico e organizativo da categoria que expõe a defasagem institucional. A crítica não é à atuação em campo; é à ausência de uma política pública que a reconheça, a integre e a fortaleça.
Desastres não são exceções. São parte da realidade climática contemporânea. E toda resposta que ignora os animais – e os profissionais que atuam diretamente com eles – está fadada à incompletude.