Falar sobre saúde mental ainda é difícil para muita gente. Em humanos, o tabu vem sendo lentamente quebrado – não sem resistência. Mas, quando o assunto são os animais, o incômodo parece ainda maior. A ideia de que cães e gatos possam apresentar alterações emocionais importantes ainda provoca reações de espanto, descrença ou até deboche. “É só frescura”, “está mimado”, “não sabe se impor como tutor”. Ou seja: é o mesmo tipo de deslegitimação que, por décadas, recaiu sobre o adoecimento psíquico humano.
Para entender por que esse tema ainda encontra tanta resistência – e o que a medicina veterinária psiquiátrica tem a dizer sobre ele – conversei com Cinthia Rosolem, médica veterinária, coordenadora de pós-graduação em medicina veterinária psiquiátrica e referência no atendimento de quadros comportamentais complexos.
“Somos acostumados a ver os animais apenas como seres instintivos, sem questões emocionais. E isso, no fundo, é um olhar muito egocêntrico do ser humano: achar que só a nossa espécie é capaz de sentir”, afirma. Ela relembra que, desde o século XIX, Darwin já descrevia emoções como medo, alegria e raiva nos animais. E na década de 70, Peter Singer consolidou o conceito de senciência animal, que inclui a capacidade de sentir angústia, tristeza e estados emocionais complexos.
Ainda assim, em pleno 2025, muitos seguem negando. “O tutor reclama que o animal late sem parar quando sai de casa, que rói objetos, mas não reconhece que aquilo é um sintoma de ansiedade”, explica. E complementa com um exemplo direto: “Nos humanos, é comum ver pessoas arrancando pele ao redor das unhas como forma de aliviar tensão. Ninguém duvida que isso é sinal de ansiedade. Mas, se o cão lambe compulsivamente as patas, muitos ainda acham que é só ‘mania’. A diferença é o preconceito.”
É aí que a medicina veterinária psiquiátrica atua: não com achismos, mas com base científica sólida — neurobiologia, etologia, comportamento, fisiologia. Segundo Cinthia: “Não trabalhamos com achismo. Trabalhamos com evidências.”
Mas afinal, o que os pets sentem — e como se expressa esse desequilíbrio emocional? A médica-veterinária lista os quadros mais comuns na rotina clínica:
• A ansiedade por separação, com vocalização intensa, destruição de objetos, automutilação e alterações fisiológicas toda vez que o tutor se afasta;
• Os comportamentos estereotipados, como andar em círculos, comuns em ambientes empobrecidos e sem estímulos;
• As fobias, com tremores, hiperventilação, tentativas de fuga e até ferimentos;
• E os transtornos compulsivos, como o hábito de perseguir a própria cauda de forma repetitiva, o que pode evoluir para automutilação.
Cinthia chama atenção também para comportamentos que, muitas vezes, são vistos como “engraçadinhos”, mas que carregam sinais de desconforto emocional não verbalizado. “O cachorro que corre atrás da própria cauda pode estar lidando com um transtorno compulsivo ou até com uma falha de reconhecimento corporal. E quando esse comportamento é reforçado – com riso, estímulo ou vídeo – pode evoluir para algo grave”.
Como dermatologista, ela destaca outro ponto crítico: a confusão entre causas clínicas e emocionais. “Recebo muitos casos de lambeduras e feridas que já chegam com tratamento dermatológico. Mas, quando investigamos, não há doença de pele; há uma causa comportamental”.
Como psicóloga, também observo frequentemente a transferência de necessidades emocionais para o animal – e perguntei se isso aparece nas queixas clínicas. A resposta foi imediata.
“Demais. Dependência emocional não é saudável em nenhuma relação – nem entre humanos, nem entre humanos e animais”. Cinthia compartilha um caso atual: um tutor dizia não conseguir sair de casa porque o cão gritava. “Ele relatava isso como sofrimento, mas reforçava o comportamento ao voltar pra casa e atender à demanda do pet. Nesses casos, ambos adoecem. E ambos precisam de suporte.”
Esses casos revelam algo que ainda é pouco nomeado, mas bastante comum: a dependência emocional do tutor em relação ao animal. Em momentos de perda, insegurança ou solidão, muitos acabam projetando no pet a função de regulador emocional. Sem perceber, depositam nele uma carga afetiva difícil de sustentar. Isso não é julgamento, é observação clínica.
Na psicologia, vemos frequentemente vínculos em que o pet se torna o único ponto de estabilidade do tutor – o único lugar seguro, previsível, afetivo. E, quando essa relação se torna excessivamente central, ela deixa de ser apenas vínculo e passa a ser sintoma. A rotina gira em torno do animal: a saída de casa se torna difícil e o bem-estar emocional do tutor passa a depender da presença constante do pet.
A medicina veterinária comportamental percebe os efeitos disso no animal. A psicologia, no tutor. E é nesse ponto que as duas áreas se encontram: para intervir, orientar e ajudar a reorganizar essa relação de forma mais saudável para ambos.
E quando o assunto é depressão, o desconforto aumenta. A depressão em pets existe? Sim. E está amplamente descrita na literatura científica. Os sinais vão desde apatia, perda de apetite, alterações no sono e no ritmo de interação, até regressões comportamentais que não podem ser ignoradas.
“A gente precisa parar de minimizar ou romantizar esses sinais. São quadros reais, com base fisiológica, e exigem diagnóstico e tratamento adequados”, diz Cinthia.
Ela cita o caso do elefante Sandro, em Sorocaba, como um exemplo de quanto as mudanças de ambiente também impactam emocionalmente os animais. “Ele vive há 43 anos no mesmo local. Falam em levá-lo a um santuário, mas e o vínculo com os tratadores? E a previsibilidade do ambiente? O estresse da transição? Não basta mudar o lugar; é preciso pensar no impacto emocional. Às vezes, promover bem-estar é melhorar onde ele já está.”
A fala dela reforça algo que vejo em muitos tutores: a tentativa de fazer o melhor, mas sem considerar as nuances emocionais do pet. E isso é mais comum do que parece.
Nós aprendemos a olhar para os animais como companheiros, como filhos, como refúgio. Mas ainda estamos aprendendo a olhar para eles como sujeitos com vida emocional própria — e, talvez, a olhar para nós mesmos com a mesma honestidade.