Nem todo luto é reconhecido.

Nem toda dor encontra espaço para existir.

No universo dos vínculos com os animais, a perda costuma ser profunda — mas muitas vezes vivida em silêncio. Ela atravessa tutores, estudantes e veterinários, que nem sempre têm permissão para sentir.

Natasha viveu isso na pele.

“Bruce foi meu filho, meu melhor amigo, foi meu primeiro cachorro que dependia de 100% de mim, ele foi meu colo nos momentos difíceis e também nos momentos felizes, tenho certeza que ele me conhecia melhor que ninguém. O diagnóstico de câncer avançado veio com a previsão de três meses de vida — mas, com cuidados paliativos e muito amor, foram seis.”

“A terapia me ajudou a trabalhar a antecipação do luto, eu era — e sou — muito apegada ao Bruce. Se eu não tivesse me preparado, acho que não teria lidado como lidei com a morte dele, sabendo que dei meu melhor e que ele teve uma vida muito feliz com a gente.”

Depois da partida, Natasha construiu rituais de memória: fotos, quadros, vídeos, uma tatuagem.

“Ela é bem visível aos meus olhos. Ele está comigo, sempre.”

Na psicologia, reconhecemos o valor dos rituais como parte ativa da elaboração do luto. Eles funcionam como âncoras simbólicas que permitem a continuidade do vínculo mesmo após a morte, oferecendo ao enlutado formas seguras de manter a conexão afetiva.

Já Talita enfrentava sua perda durante a graduação em medicina veterinária.

“Confesso que me senti um tanto impotente. Apesar de saber a teoria, na prática a medicina veterinária não estava me ajudando a salvar a minha Berenice. Fiz todos os exames possíveis, mas não direcionavam para um diagnóstico concreto.”

“Muitas vezes fui a médica veterinária, mas na maior parte do tempo, fui só sua tutora, que parecia não entender o que estava acontecendo e o porquê de nada estar dando certo.”

“A partir dessa experiência, aprendi que, se eu não pude salvar a vida da minha própria pet, não seria capaz de salvar muitos dos que ainda passarão pelas minhas mãos, infelizmente. […] O mais importante para mim hoje, como profissional, não é só salvar a vida do animal, mas evitar o sofrimento, sabendo que a morte pode ser uma realidade.”

“Fui eu quem decidiu por interromper a ressuscitação. […] Afirmo para mim mesma que fiz o meu melhor, ali, naquela sala e durante toda a vida dela, e a deixei partir. Doeu, mas sei que foi a melhor decisão e não faria diferente.”

A fala de Talita evidencia um ponto sensível: a dor emocional na formação veterinária ainda é negligenciada. Em muitos contextos acadêmicos, vivências como a dela não têm espaço para serem sentidas, elaboradas ou sequer nomeadas.

Kenneth Doka chama isso de luto não reconhecido — aquele que não encontra validação social, mesmo sendo legítimo e profundo. No setor petvet, esse tipo de luto é comum: entre tutores, estudantes e profissionais que sofrem calados.

Porque a dor que não é reconhecida não desaparece.

Ela se cala, muda de forma e encontra outras maneiras de se manifestar.

Dr. Adriano, médico veterinário especializado em cuidados paliativos, acompanha isso de perto.

“Na maioria das vezes, os responsáveis não chegam prontos para esse tipo de cuidado e conversa, e isso é completamente compreensível. A ideia de que não estamos mais buscando a cura, mas sim o conforto, costuma ser muito difícil de aceitar, afinal, estamos falando de um membro da família. […] A resistência não vem de falta de amor, mas justamente do desejo de fazer o melhor.”

Ele também chama atenção para os impactos emocionais da rotina profissional: “Os profissionais da medicina veterinária não são preparados, durante a graduação, para lidar com o fim da vida ou com os impactos emocionais da perda. Isso pode gerar sofrimento acumulado, desgaste emocional e até burnout. O apoio psicológico, nesse contexto, não é apenas um cuidado com o tutor, mas uma parte essencial do cuidado com toda a rede envolvida nesse processo.”

Esse ponto é central. Como psicóloga que atua diretamente com o setor petvet, vejo diariamente os efeitos desse acúmulo emocional: exaustão, insônia, distanciamento afetivo, adoecimento psíquico. Quando não há espaço para refletir e sentir, o sofrimento se torna crônico. Cuidar da saúde mental dos profissionais não é um luxo — é o que sustenta o cuidado como prática viável, humana e ética.

Nos atendimentos que realizo e nas supervisões clínicas que conduzo, vejo o quanto esse sofrimento atinge tutores, estudantes e profissionais da saúde animal — todos atravessados por histórias que ainda não puderam ser escutadas com profundidade.

Porque onde há vínculo, há afeto.

E onde há afeto, haverá sempre algo a elaborar.

Luto que é escutado vira memória.

Luto que é reconhecido vira legado.

Luto que é acompanhado… vira potência de vida.