Nem todo luto é autorizado, mesmo quando é legítimo, profundo e atravessa o corpo inteiro. Nem toda dor encontra espaço para existir, especialmente quando não cabe nas categorias sociais do “que se deve sofrer”.

No universo dos vínculos com os animais, a perda costuma ser intensa, transformadora e silenciosa. Mas, ainda assim, muitas vezes não é reconhecida.

Ela atravessa tutores que foram família, estudantes que foram mais do que técnicos, e veterinários que amaram — mas que nem sempre puderam sentir.

Foi assim para Natasha Berford, tutora do Bruce.

“Bruce foi meu filho, meu melhor amigo, foi meu primeiro cachorro que dependia de 100% de mim, ele foi meu colo nos momentos difíceis e também nos momentos felizes, tenho certeza que ele me conhecia melhor que ninguém. Saber que ele estava sempre me esperando e que a carinha dele mudava quando ele ouvia minha voz demonstrava o quanto nosso vínculo era forte.”

O diagnóstico de câncer, sem possibilidade de cura, mudou tudo. A expectativa era de apenas três meses de vida — mas, com cuidados paliativos e presença afetiva, Bruce viveu o dobro.

“Quando descobrimos o câncer que não tinha cura, dei meu máximo para dar qualidade de vida para ele. Fizemos todo o tratamento paliativo para ele viver o máximo possível sem dor e pudesse viver os últimos meses comigo e com meu marido.”

Mas, afinal, o que são cuidados paliativos veterinários? O médico veterinário Adriano Baldaia, especialista na área, explica:

“Os cuidados paliativos têm como foco proporcionar bem-estar e alívio ao paciente, mesmo em fases avançadas da enfermidade. Isso inclui a gestão de sintomas como dores, dificuldade para respirar, náuseas, entre outros, além de apoiar decisões que respeitem o estágio da doença e os vínculos afetivos entre tutor e animal.”

Na psicoterapia, Natasha encontrou apoio para viver um luto que começava antes da morte.

“A terapia me ajudou a trabalhar a antecipação do luto. Se eu não tivesse me preparado, acho que não teria lidado como lidei com a morte dele, sabendo que dei meu melhor e que ele teve uma vida muito feliz com a gente.”

Depois da partida, ela criou formas de manter Bruce por perto.

“Ela [a tatuagem] é bem visível aos meus olhos. Ele está comigo, sempre.”

Na psicologia, compreendemos que rituais como esses não são apenas homenagens: são mecanismos psíquicos de elaboração e continuidade. Eles permitem simbolizar a presença, integrar a ausência e transformar a dor em memória.

Já Talita Riserio, estudante de medicina veterinária, enfrentou um tipo diferente de perda. Sua cachorra Berenice adoeceu rapidamente, sem diagnóstico definido.

“Confesso que me senti um tanto impotente. Apesar de saber a teoria, na prática a medicina veterinária não estava me ajudando a salvar a minha Berenice. Fiz todos os exames possíveis mas não direcionavam para um diagnóstico concreto.”

“Muitas vezes fui a médica veterinária, mas na maior parte do tempo, fui só sua tutora, que parecia não entender o que estava acontecendo e o porquê de nada estar dando certo.”

“O mais importante para mim hoje, como profissional, não é só salvar a vida do animal, mas evitar o sofrimento, sabendo que a morte pode ser uma realidade. Fui eu quem decidiu por interromper a ressuscitação. […] Afirmo para mim mesma que fiz o meu melhor, ali naquela sala e durante toda a vida dela, e a deixei partir. Doeu, mas sei que foi a melhor decisão e não faria diferente.”

A fala de Talita revela uma realidade comum nas faculdades de medicina veterinária: o luto é vivenciado, mas raramente elaborado. A exigência técnica e o silenciamento emocional expõem os estudantes a experiências de perda sem qualquer suporte institucional. Isso gera sofrimento — e esse sofrimento, quando não reconhecido, se acumula.

Kenneth Doka chama isso de luto não reconhecido: aquele que não encontra permissão social para existir, mesmo sendo real e profundo. No setor petvet, esse tipo de luto é mais comum do que se imagina.

Porque a dor que não encontra reconhecimento não se dissolve com o tempo — ela se acomoda nos gestos automáticos, nos silêncios prolongados e nas urgências não ditas do dia a dia.

Adriano Baldaia, que atua diretamente com famílias e animais em situações delicadas, acompanha isso de perto.

“Na maioria das vezes, os responsáveis não chegam prontos para esse tipo de cuidado e conversa, e isso é completamente compreensível. A ideia de que não estamos mais buscando a cura, mas sim o conforto, costuma ser muito difícil de aceitar, afinal, estamos falando de um membro da família. […] A resistência não vem de falta de amor, mas justamente do desejo de fazer o melhor.”

“Os profissionais da medicina veterinária não são preparados, durante a graduação, para lidar com o fim da vida ou com os impactos emocionais da perda. Isso pode gerar sofrimento acumulado, desgaste emocional e até burnout. O apoio psicológico, nesse contexto, não é apenas um cuidado com o tutor, mas uma parte essencial do cuidado com toda a rede envolvida nesse processo.”

Esse ponto é central. Como psicóloga que atua diretamente com o setor petvet, vejo diariamente os efeitos desse acúmulo emocional: exaustão, insônia, distanciamento afetivo, adoecimento psíquico. Quando não há espaço para refletir e sentir, o sofrimento se torna crônico. Cuidar da saúde mental dos profissionais não é um luxo — é o que sustenta o cuidado como prática viável, humana e ética.

Nos atendimentos clínicos, nas formações e supervisões que conduzo, escuto histórias como essas o tempo todo. Lutos que ficaram interditados. Sofrimentos que ninguém nomeou. Decisões que ainda doem.

Encerrar um vínculo nunca é simples, especialmente quando ele foi construído no cotidiano, no cuidado, na presença silenciosa que os animais oferecem sem exigir nada em troca. Elaborar o luto nesse contexto exige coragem para olhar a dor com honestidade, reconhecer a ausência sem negar a importância do vínculo e seguir em frente sem apagar o que foi vivido.

Quando há espaço para nomear essa dor, ela não paralisa: ela transforma. O sofrimento não precisa ser um ponto final. Pode ser, sim, o início de uma nova forma de presença, mais simbólica, mais interna, mas ainda viva. E é justamente aí que o luto, quando reconhecido e acompanhado, deixa de ser apenas perda. Ele se torna expressão daquilo que foi amor.