Na madrugada de uma enchente que parecia apenas mais uma entre tantas, um homem teve de tomar uma das decisões mais difíceis da vida: sair às pressas, deixando o próprio cão para trás. Não por escolha, mas por imposição. A partir dali, começou a história que quase ninguém vê, aquela em que o tempo para, mas o afeto continua esperando.
Jorge Yuri Machado da Silva é barbeiro. Alguém que ama um animal como parte da família. Na noite de 2 para 3 de maio de 2024, quando as águas invadiram Canoas (RS), ele e a família buscaram abrigo. Subiram para o segundo andar da casa de um vizinho. Levaram Tigre, o cão da família, junto. Mas a água continuou subindo. Decidiram sair. No caminho, precisaram parar no hospital para tratar o ferimento de um parente, e Jorge seguiu ajudando outras pessoas enquanto Tigre ficou com os avós.
Horas depois, ao passarem pelo último bairro possível, uma equipe de resgate encontrou o avô de Jorge. Ele estava com Tigre. Os socorristas disseram: “O senhor pode ir conosco; o cachorro não vai agora – a gente volta pro cachorro depois”.
O avô tentou argumentar: “Mas ele não morde”.
Mesmo assim, impuseram a escolha: ou ele ia ou ficavam os dois. O avô foi. E Tigre ficou. Amarrado no segundo piso, à espera de uma promessa que nunca se cumpriu.
Desde então, Jorge não teve mais notícias. Voltou para casa após a enchente e jurava vê-lo correndo pelos cômodos. Ouvia latidos à noite. Sentia o cheiro. Recusou outro cachorro oferecido por amigos. “Não era o Tigre.” A ausência virou presença. Mas ninguém nomeava aquilo.
Na psicologia, chamamos isso de luto ambíguo. Uma dor que não fecha, um luto que não sabe se é luto, porque o vínculo não acabou. Apenas desapareceu da vista. Pauline Boss, referência internacional no tema e professora emérita da Universidade de Minnesota, descreve o luto ambíguo como uma perda que permanece sem encerramento – quando não há corpo, não há notícia, mas o amor continua. É uma dor que paralisa, justamente por não se saber se é hora de sofrer… ou de esperar.
Jorge esperou. E procurou. Voluntariou em abrigos. Vasculhou rostos caninos, caudas abanando, olhos ansiosos. Nenhum era o Tigre. Até que, um ano e um mês depois, viu um vídeo no Instagram. Um cão, em cima de um telhadinho, num abrigo prestes a fechar. O corpo estava mais magro, os pelos ralos, mas o olhar… o olhar era dele.
“Eu comecei a chorar. Tinha certeza de que poderia ser ele.”

O reencontro ainda foi adiado por novas chuvas. Quando aconteceu, trouxe tudo de volta: os filmes da pandemia, as pipocas divididas, os dias escuros em que Tigre era o único a permanecer. “A memória que eu tive foi essa: do período mais difícil da minha vida. E ele esteve comigo.”
Hoje, Jorge fala com clareza do que mudou: “Sou uma pessoa melhor. Aprendi a valorizar cada segundo com quem a gente ama. Nunca mais deixo um carinho pra depois”.
E também viu a transformação no próprio Tigre: “Ele estava ansioso, os pelinhos dos olhos tinham caído… mas agora ele engordou, os pelos voltaram. É como se tivesse voltado a ser ele mesmo”.
Para quem perdeu um animal em um desastre – e ainda vive com essa dor que ninguém vê – Jorge deixa uma mensagem: “Lembre dos momentos bons. Do cheiro, da companhia, das coisas pequenas. E nunca perca a esperança. Mesmo que outra pessoa esteja cuidando, seu animal nunca esquece de você. Do seu cheiro. Da sua voz. E do que vocês viveram”.
Histórias assim não são só emocionantes. Elas são reais. E, muitas vezes, silenciosas. Nem todo mundo reencontra seu Tigre. E é por isso que precisamos falar sobre isso. Dar nome às dores que o mundo ainda não reconhece. Criar espaços de escuta, acolhimento e orientação para quem vive um luto que não aparece nas estatísticas, mas que corrói por dentro.
É por isso que existe o meu trabalho. Para quem vive um luto sem corpo. Um trauma sem mapa. Um amor que ainda precisa ser cuidado.
Se essa história mexeu com algo aí dentro, talvez você também esteja esperando por um espaço de escuta – um lugar onde ausências ganham nome, vínculos ganham voz, e o luto, finalmente, ganha cuidado.
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