Durante décadas, os animais de estimação ocuparam papéis previsíveis na estrutura familiar: guardiões de quintal, companheiros das crianças, enfeites da sala. Mas algo vem mudando — e rápido. O cachorro que antes “ficava lá fora” hoje dorme na cama, frequenta creche, faz aniversário com direito a bolo sem glúten e tem plano de saúde. Para muitos, virou filho. E esse novo status muda tudo — para o mercado, para a cultura e para a forma como vivemos em sociedade.

Estamos diante da consolidação de um novo modelo familiar: a família multiespécie. Um termo que até pouco tempo atrás soava como provocação acadêmica, mas que hoje descreve com precisão uma realidade cada vez mais comum nos lares urbanos. Segundo o IBGE, já há mais domicílios com cães do que com crianças pequenas. Em São Paulo, é possível ver esse novo arranjo nos cafés pet friendly lotados, nas prateleiras das farmácias com florais para ansiedade canina e no crescente número de pessoas que se apresentam como “pais e mães de pet”.

Esse fenômeno não é só afetivo — é econômico, social e cultural. A chamada antropomorfização dos pets (atribuir a eles características humanas) impulsiona uma série de comportamentos e decisões de consumo. Produtos que antes eram considerados supérfluos agora são tratados como essenciais. O cachorro, agora “filho”, precisa de alimentação natural, brinquedos educativos, estímulo cognitivo, socialização regular e cuidados com a saúde mental. Sim, saúde mental.

Mas a humanização dos animais também nos traz dilemas importantes. Até que ponto estamos projetando neles nossas próprias carências? Será que sabemos respeitar os limites da espécie ou estamos tentando moldá-los à nossa imagem e semelhança? Um cão precisa de rotina, limites claros e estrutura — coisas que muitas vezes se perdem quando ele é tratado como um mini humano.

Essa mudança no papel dos animais também pressiona profissionais e negócios do setor pet. Não basta mais “gostar de bicho”. É preciso entender de comportamento canino, oferecer experiências personalizadas e, principalmente, saber dialogar com um público altamente envolvido emocionalmente. A prestação de serviços pet exige hoje o mesmo nível de excelência, empatia e comunicação que se espera de qualquer área voltada à infância ou saúde.

Por trás da ideia de que “meu cachorro é meu filho”, existe um fenômeno profundo: a transformação das relações humanas mediadas por novas formas de vínculo. Famílias menores, urbanização, solidão e uma busca crescente por conexões autênticas ajudam a explicar esse movimento. Os pets entram nesse vácuo emocional com o poder de preencher afetos — e isso não é pouco.

A pergunta que fica é: estamos preparados, como sociedade e como setor, para lidar com essa nova configuração familiar? Porque o cachorro virou filho — e isso muda tudo.