Nos últimos anos, especialmente após a pandemia, vimos um crescimento expressivo no número de pets e na centralidade afetiva que ocupam nas famílias brasileiras. A relação entre humanos e animais de estimação passou a ganhar cada vez mais espaço nas conversas sobre saúde emocional, vínculos afetivos e bem-estar cotidiano. Não é raro vermos pets ocupando lugares de destaque nas famílias, sendo chamados de filhos, companheiros ou até mesmo como a presença mais segura em tempos de instabilidade.
Essa proximidade, no entanto, carrega nuances que precisam ser observadas com sensibilidade. O vínculo humano-animal é potente, mas também pode ser carregado de idealizações, projeções e expectativas silenciosas — que nem sempre favorecem o bem-estar do animal, nem do tutor.
Por isso, convidei a psicóloga Patrícia Vidal Hernandezi, especialista em luto e vínculos, para uma conversa profunda sobre esse tema tão relevante. A seguir, compartilho reflexões que unem nossas escutas clínicas, revisitando os limites e potências dessa relação única.
O que torna o vínculo com um animal tão singular? O que faz com que tantas pessoas encontrem nos pets uma presença quase insubstituível? A psicóloga Patrícia afirma que o vínculo humano-animal costuma se apresentar como uma relação quase ideal: “Ele é incondicional, previsível, marcado por aceitação e disponibilidade. Não há conflitos como nas relações humanas, e isso gera uma sensação irresistível de segurança emocional”.
“Na minha prática clínica, percebo que muitos tutores buscam no animal um porto seguro emocional após experiências dolorosas com humanos”: relacionamentos conflituosos, perdas não elaboradas, histórias de abandono. O animal, nessa dinâmica, se torna ponto focal da vida afetiva e ocupa um espaço simbólico muito mais amplo do que aquele de um simples companheiro.
Mas toda relação significativa também é terreno de projeções, como lembra a psicóloga Patrícia: “a projeção sempre acontece” — seja na expectativa que criamos ao adotar um animal, seja nas qualidades que atribuímos a ele. O desafio, como ela destaca, está em reconhecer quando deixamos de ver o animal como ele é e passamos a enxergá-lo somente como extensão das nossas necessidades.
Essa confusão entre afeto e projeção pode gerar desequilíbrio. Quando o tutor perde a capacidade de reconhecer o pet como um ser independente — com instintos, limites e formas próprias de expressão —, o vínculo pode se transformar em controle. É o que se vê em situações de humanização excessiva: o pet é forçado a viver uma rotina completamente humana, a corresponder a expectativas emocionais que não lhe pertencem.
Na minha atuação com profissionais do setor PetVet, observo que esse movimento tem impacto direto na relação entre tutores e clínicas. São frequentes os casos em que o sofrimento do tutor não está somente no estado do animal, mas na iminente perda simbólica do lugar que o animal ocupa em sua vida. É uma dor legítima, embora nem sempre reconhecida, que pode se expressar como resistência a diagnósticos, recusa ao envelhecimento do pet ou dificuldade em lidar com a possibilidade da perda.
Patrícia alerta que, quando o vínculo perde a reciprocidade e o respeito à natureza do animal, o que se instala é uma forma de violência sutil. Desde o passeio em horários inadequados até o uso de roupas desconfortáveis e práticas estéticas sem sentido para o pet, há um distanciamento do que é cuidado genuíno. Em casos mais extremos, a relação deixa de ser vínculo para se tornar instrumento: o pet vira símbolo de status, extensão da autoestima do tutor. “Onde há relação de poder, não há relação de amor”, lembra Patrícia, evocando Jung.
É nesse contexto que surge a recente Lei 15.150/2025, que proíbe tatuagens e outras intervenções estéticas em animais. Um marco importante na tentativa de proteger os pets dos excessos mais visíveis. Mas ele também nos provoca a pensar sobre algo mais sutil — os excessos simbólicos, emocionais e afetivos, que seguem à margem da legislação. Como destaca Patrícia, é urgente abrir espaço para refletir sobre esses atravessamentos menos evidentes, mas igualmente danosos.
Ao longo da nossa conversa, ficou evidente que ambas compartilhamos uma mesma inquietação: “a serviço do que estou fazendo isso com o meu animal?”. Essa pergunta tem me acompanhado cada vez mais nas escutas clínicas e nas reflexões sobre o vínculo humano-animal.
Percebo que, quando essa relação se torna excessivamente simbólica, há uma tendência de esquecermos que o animal é, antes de tudo, um ser com natureza própria. Sustentar o vínculo com consciência e respeito — sem o moldar aos nossos vazios — é o que permite construir uma relação verdadeiramente viva, nutritiva e transformadora.
E talvez essa seja uma das maiores lições que os animais nos oferecem: eles têm muito a nos ensinar sobre disponibilidade, presença, escuta e afetividade espontânea. Mas nós também temos a responsabilidade de cuidar do lugar que eles ocupam nas nossas vidas. Não é sobre perfeição. É sobre clareza.
E clareza, nesse vínculo, é também uma forma de afeto e respeito — numa relação que se revela cada vez mais essencial em nossa sociedade.