A possível fusão entre Petz e Cobasi, somada ao movimento da Petlove para assumir parte dos ativos, tem sido analisada quase sempre pelo mesmo prisma: escala, competitividade, participação de mercado e impacto nos preços. Faz sentido. Mas é uma leitura incompleta. Existe uma camada pouco discutida, e decisiva, quando falamos de um setor que lida com vínculo e vulnerabilidade todos os dias: o efeito dessa reconfiguração sobre a saúde mental de quem trabalha na ponta e sobre a qualidade do cuidado oferecido a pets e responsáveis (tutores).

O setor PetVet já opera sob alta carga emocional. Médicos veterinários e suas equipes convivem com longas jornadas, baixa previsibilidade financeira, múltiplas responsabilidades e exposição contínua a sofrimento, adoecimento e decisões difíceis. Quando mudanças estruturais alteram o ambiente de trabalho, os impactos não ficam restritos ao faturamento. Eles atravessam a rotina, o corpo e a capacidade de sustentar o cuidado sem adoecer junto.

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Para Fabiano Granville, idealizador do EloVetNet e executivo da VetFamily, a fusão tende a agravar fragilidades já existentes, especialmente entre profissionais que dependem do varejo como parte relevante da receita. “A fusão permitirá a prática de preços de prateleira muito próximos do valor que o veterinário paga à distribuidora. Isso inviabiliza essa vertical de receita com margens minimamente atrativas”, afirma. O problema, porém, não é só econômico. Fabiano descreve um cenário comum na profissão: profissionais que trabalham mais de 40 horas por semana, incluindo finais de semana, muitas vezes sem férias, sem 13º, sem direitos trabalhistas e com remuneração baixa no final do mês. Nesse contexto, ele alerta para o peso emocional acumulado. Esse contexto adiciona mais um ingrediente a um quadro já conhecido de estresse, depressão e burnout, que pode evoluir para desfechos graves e irreversíveis.

Fabiano define o momento vivido por clínicas independentes como uma “tempestade perfeita”. Além da pressão crescente no varejo, ele aponta um achatamento de margens nos serviços, impulsionado principalmente pela expansão dos planos de saúde pet. “Já vemos muitas clínicas de pequeno e médio portes fechando as portas”, diz. A consequência se estende para além do caixa: “Essa incerteza financeira extrema traz enorme insegurança em relação ao futuro, travando planejamentos de médio e longo prazo. No curto prazo, as dívidas e o excesso de trabalho levam o profissional à exaustão.” Em um setor que já vive no limite, instabilidade prolongada costuma virar um amplificador de ansiedade, desgaste e sensação de impotência.

A reorganização do mercado também acontece em paralelo a uma mudança no perfil do consumidor. Fabiano observa que o latino, de modo geral, valoriza o presencial e o acolhimento, especialmente a geração acima dos 40 anos. Ao mesmo tempo, ele percebe uma tendência entre os mais jovens de maior aceitação do remoto e da impessoalidade. Os consumidores abaixo dos 40 anos já representam aproximadamente metade da clientela dos pequenos estabelecimentos, o que não favorece as “lojas de bairro”. Ele lembra que dinâmicas semelhantes já ocorreram em outros segmentos, como academias, supermercados e farmácias. A diferença é que, no cuidado com animais, a perda de proximidade não é um detalhe. O vínculo humano sustenta adesão a tratamentos, tomada de decisão e permanência do cuidado quando a vida aperta.

É justamente quando a vida aperta que a massificação mostra seu limite. Para Fabiano, “o setor perde muito em situações de finitude e luto com a migração para o remoto. A tecnologia não substitui o presencial quando o assunto é vínculo emocional”. Ele faz um paralelo com a medicina humana, em que existem profissionais dedicados a como comunicar más notícias aos familiares, pela relevância clínica e humana desse momento. No universo veterinário, esse cuidado também importa. “Acredito que o caminho seja priorizar o presencial quando nos deparamos com casos desafiadores, terminais e óbito. Importante para o pet e para o tutor (responsável)”, afirma. Quando o atendimento se torna excessivamente padronizado, existe o risco de transformar experiências profundamente humanas em processos frios, e isso cobra um preço: sofrimento mais intenso, culpa, decisões mais solitárias e lutos com menos apoio.

Diante do cenário, Fabiano aponta dois pilares como essenciais para atravessar a transição: gestão e suporte emocional. “A partir do momento em que o veterinário opta por abrir seu próprio negócio, ele passa a ter uma empresa. Portanto, há a necessidade de conhecimentos e habilidades que a graduação em veterinária não nos ensina”, diz. Para ele, hoje, manter a porta aberta exige conhecimento técnico e, cada vez mais, conhecimento de gestão. No plano emocional, a recomendação é clara: buscar ajuda especializada não apenas em crise, mas de forma preventiva. Segundo Fabiano, esse profissional pode ajudar o veterinário a evitar ou conviver melhor com a exaustão emocional que leva a estresse, depressão e burnout, além de apoiar, indiretamente, os responsáveis em casos de pacientes terminais ou que evoluíram para óbito. E ele acrescenta um ponto que traduz a dureza da rotina: um dos maiores sofrimentos do veterinário é presenciar o sofrimento do cliente, muitas vezes em uma situação em que pouco pode fazer. Ter suporte muda a forma de atravessar esse lugar.

A consolidação do mercado pet não é automaticamente um problema. O risco está em tratá-la como se fosse apenas uma discussão de eficiência e preço. Quando a lógica vira só escala, alguém paga a conta emocional, e quase sempre é quem está na ponta: profissionais, responsáveis e, inevitavelmente, os próprios animais. Falar de fusão sem falar de saúde mental, vínculo e humanização é analisar apenas metade do fenômeno. No setor pet, essa metade costuma ser a que mais determina a qualidade do cuidado quando ele realmente importa.

Há ainda um desdobramento que permanece à margem das análises mais imediatas, mas que tende a ganhar relevância à medida que essa consolidação avança os reflexos na experiência de consumo do cuidado. Alterações na dinâmica de preços, no acesso ao atendimento e, sobretudo, na preservação do vínculo entre profissionais, tutores e animais não são neutras. Elas redefinem expectativas, formas de relacionamento e a própria percepção de valor no setor pet. Compreender como essas transformações chegam ao cotidiano dos clientes especialmente nos momentos em que o cuidado exige presença, escuta e sensibilidade, torna-se um próximo passo necessário. Um tema que se impõe não como conclusão, mas como continuidade do debate sobre os rumos do mercado e da humanização no cuidado animal.