Existe uma data para celebrar todos os vira-latas. O Dia do SRD (sigla de “sem raça definida”) é comemorado em 31 de julho. Nos EUA, ela faz parte do calendário pet desde 2005, como National Mutt Day. Tanto lá, como aqui ou em outros países em que também foi estabelecido esse marco, o objetivo é chamar atenção para os animais de abrigos. Na grande maioria das vezes, são cães e gatos que não têm uma raça – ou que têm todas, como dizem alguns ativistas.

De acordo com uma pesquisa da Mars Petcare, cerca de 30,2 milhões de gatos e cães vivem em situação de abandono no Brasil. Nos abrigos, estão 177.600 cachorros e 7.400 felinos à espera de um lar. Os dados, divulgados no ano passado, mostram como é desafiador o trabalho das entidades e dos protetores dedicados à adoção responsável.

Os brasileiros estão mais conscientes da importância do tema, mas a realidade é que, apesar da popularidade de vira-latas como o caramelo, os SRDs ficam de lado se, na hora de adotar, também houver um animal de raça (que pode ter sido resgatado de maus-tratos ou se tratar de caso de abandono). No dia a dia das ONGs de causa animal percebe-se, inclusive, que, mesmo que o bicho seja um autêntico vira-lata, se ele tiver a aparência de um animal de raça, ele será escolhido primeiro.

É o que nota a psicóloga Natércia Tiba, cocriadora do Projeto Amor de Pet, de São Paulo, em eventos de adoção realizados há quase oito anos junto com sua sócia, Nathalia Moreno, protetora com mais de 15 anos de atuação na área.

A experiência já mostrou para Natércia que até nas redes sociais é possível perceber a preferência. Se há um post com um caramelo resgatado e outro com um cão de raça ou um que se pareça com um shih tzu, por exemplo, o engajamento é maior com o segundo. “A quantidade de likes que o animal de raça recebe é dez vezes mais do que o vira-lata”, afirma.

“O movimento do caramelo no Brasil tem sido enorme e creio que abriu a mente das pessoas. Tem gente que fala com orgulho que tem um caramelo. Mas eles ainda são rejeitados na adoção”, completa.

Efeito “Superman” e influência de bicho famoso na mídia

Natércia aponta mais um fator que influencia escolhas. É quando um determinado bicho ganha holofotes na TV e no cinema. O filme “Superman”, que está atualmente em cartaz, traz Krypto, o supercão, que é branco, peludinho e de porte médio.

Segundo o aplicativo de treinamento de cães Woofz, a busca por “adoção de cachorro perto de mim” cresceu 513% no Google no primeiro final de semana de exibição do longa nos EUA – e isso é muito bom. Por outro lado, o termo “adotar um schnauzer” subiu 299%, o que indica que o público enxerga semelhanças entre Krypto e cães dessa raça.

“Quando você vê um perfil de cachorro se destacando na mídia, há um aumento de procura por aquele tipo”, comenta a psicóloga.

Os animais mais procurados nos abrigos são filhotes. Os que ficam para trás são, em geral, cães mais velhos, SRDs de pelagem preta e curta e caramelos de pelo curto. (Crédito:Divulgação)

Entre os SRDs, quem são os mais procurados

Na experiência do Projeto Amor de Pet, que completa oito anos em outubro e já resgatou e viabilizou a adoção de mais de 600 animais, o público dá preferência a filhotes, cães peludinhos e os que parecem de raça. Os que ficam para trás são os mais velhos, os cachorros pretos de pelo curto (até filhotes) e os caramelos de pelo curto. Entre os gatos, a adoção de SRDs é mais fácil

A psicóloga faz uma observação: filhotes de vira-latas podem enganar a projeção que o tutor faz do tamanho do animal. Não dá para ter certeza do porte do cachorro, ainda que a mãe esteja no abrigo. “Uma cachorrinha que está na rua engravida de vários cães. A gente já teve ninhada em que um filhote ficou com seis quilos e outro, com 21”.

Esse é um aviso importante porque outro problema enfrentado pelas entidades é a devolução de pets. Em alguns casos, o argumento é que o cachorro cresceu mais do que a pessoa imaginava. Isso demonstra o quanto é fundamental bater na tecla da adoção responsável: os compromissos com a vida do animal devem ser sólidos.

Há quem possa ficar receoso de adotar um SRD porque, em geral, são bichos resgatados ou que viviam nas ruas. Não se sabe a história deles. Por isso, eles sofrem preconceito, com medo de que não sejam capazes de aprender e ter bom comportamento.

Mas, como ressalta Natércia, amor e bom cuidado são capazes de superar até traumas de animais que passaram por sofrimento. É claro que, se a ONG for bastante atenta ao comportamento dos cães e gatos de seu abrigo, ela poderá orientar melhor se o futuro companheiro de casa se dá melhor com mais de um pet em casa ou se é do tipo para ser o único vira-lata da família.

Também vale dizer que há uma impressão errada de que, por ser SRD, o animal pode ficar no quintal, sem casinha ou sem cuidados. Natércia diz que a adoção só pode ser feita se houver certeza de que o cão ou gato terá uma vida melhor do que teria se continuasse no abrigo do projeto. “Claro que tem muito tutor bom, mas precisamos falar das coisas que vemos. O SRD não pode ser menos valorizado do que outros animais”, afirma.

Nathalia Moreno e Natércia Tiba (de camiseta azul) criaram o Projeto Amor de Pet. Começo de tudo foi com a adoção de Maggie, um fiapo de manga cinza por Natércia. (Crédito:Acervo pessoal)

A história do Projeto Amor de Pet

O Amor de Pet começou quando Natércia adotou uma vira-lata cinzenta, do tipo fiapo de manga. Ela, que já tinha dois cães, decidiu dar lar para mais um e buscou um SRD nos perfis de ONGs no Instagram. Ao encontrar Maggie, descobriu que a cachorrinha não estava com a entidade e sim com uma protetora independente, Nathalia. “Fiquei muito apaixonada pelo trabalho dela”.

Mas a própria história do animal que acolheu deu impulso para um novo capítulo na história de Natércia. Maggie tinha passado por muitos eventos de adoção, sem sucesso. A psicóloga soube, então, como a causa da adoção responsável é um imenso desafio no Brasil.

“Meus filhos, que eram adolescentes, disseram para a gente achar uma forma de apoiar a protetora”, lembra. E assim surgiu o projeto, com Natércia e sua família juntando forças com Nathalia.

Atualmente, o abrigo da entidade recebe entre 10 e 15 animais. Não há intenção de ampliar o espaço muito mais do que isso. Exatamente para que elas possam dar conta dos bichos resgatados e para que também consigam fazer um acompanhamento das novas famílias formadas a partir do projeto. Os cães e gatos do Amor de Pet são levados a eventos de adoção. Pelas redes sociais, também são organizadas entrevistas com possíveis tutores.

A principal fonte de renda da entidade é o dinheiro de mantenedores mensais. Há ainda rifas com objetos doados para o projeto e campanhas de cotas. Souvenirs do Amor de Pet também são vendidos.