Ele começa a dormir o dia todo, a se perder dentro de casa, a esquecer comandos que sempre entendeu com facilidade. Em vez de esperar na porta como antes, agora se isola, anda em círculos, parece confuso. O tutor observa e, num primeiro impulso, diz: “Deve ser a idade”.
Mas nem sempre é só isso. A Síndrome da Disfunção Cognitiva (SDC), uma condição neurodegenerativa em cães idosos com semelhanças ao Alzheimer humano, ainda é pouco conhecida, frequentemente confundida com “mania de velhice” ou questões comportamentais passageiras.
“A frase que mais ouvimos é: ‘ele está envelhecendo’. Mas nem todo comportamento novo em um pet idoso deve ser atribuído à idade”, afirma Elidia Zotelli, médica veterinária neurologista e referência na área. Segundo ela, sinais como desorientação, troca do dia pela noite, perda de hábitos de higiene, medo repentino, vocalizações sem causa aparente e mudanças de interação com a família devem ser investigados com atenção.
Como psicóloga que atua diariamente com tutores e profissionais do setor petvet, vejo de perto como essas mudanças comportamentais impactam emocionalmente quem cuida. A sensação de perda começa antes da despedida.
É como se o pet ainda estivesse ali, mas, ao mesmo tempo, já não fosse mais o mesmo. Esse tipo de vivência se aproxima do que chamamos de luto ambíguo, quando existe presença física, mas ausência psicológica. Um luto que confunde, prolonga o sofrimento e dificulta o reconhecimento social da dor, porque, para o mundo, o animal ainda está vivo. Mas, para o tutor, algo já se perdeu.
Essa dificuldade de compreender o que está acontecendo também aparece na medicina humana.
Segundo o psiquiatra Higor Caldato, diferenciar quadros neurológicos de transtornos psiquiátricos é um dos grandes desafios da clínica. “Já atendi pacientes diagnosticados com depressão resistente que, depois de uma investigação mais cuidadosa, revelaram sinais precoces de Parkinson. E o contrário também acontece: quadros de apatia e lentificação motora podem parecer doenças neurológicas, mas são depressão”, explica. Ele completa: “O cérebro dá pistas, nunca entrega um laudo pronto. É a escuta, o tempo e a repetição dos relatos que ajudam a compor o diagnóstico real”.
No caso dos pets, o desafio é ainda maior. “Os animais não verbalizam o que sentem. Muitas vezes, expressam dor ou frustração por meio de comportamentos que são interpretados como ‘birra’, quando, na verdade, são sinais neurocomportamentais importantes”, explica Elidia.
Ela reforça a necessidade de uma escuta atenta aos tutores e de uma atuação integrada entre clínica, neurologia e comportamento. “Nenhum profissional sozinho dá conta. A equipe precisa atuar junto, considerando também a rotina familiar, as limitações do quadro e as possibilidades reais de cuidado.”
Se o diagnóstico já é complexo, lidar com ele pode ser ainda mais desafiador. Higor observa que muitos familiares de pacientes com demência vivem um tipo de luto antes da perda física. “O que mais vejo é um luto que começa antes da morte. Muitos filhos e cônjuges me dizem: ‘Ele ainda está aqui, mas não é mais ele’. A sensação de perder aos poucos quem a gente ama é devastadora. Esse sofrimento é cheio de culpa por sentir raiva, por se cansar, por não saber como agir”.
Esse processo, na psicologia, é reconhecido como luto antecipatório, uma forma de luto que se inicia antes da morte concreta, quando o cuidador já vivencia perdas simbólicas ao longo do adoecimento. A cada regressão, mudança de comportamento ou falha de reconhecimento, algo do vínculo original se desfaz. E isso gera dor, culpa e exaustão emocional, especialmente quando não há espaço para nomear esse sofrimento.
No caso dos tutores de pets com alterações neurológicas, o luto antecipado é ainda mais invisível, porque a sociedade tende a minimizar o impacto da perda quando não envolve um ser humano. Mas o sofrimento é real, e precisa ser reconhecido.
“Quando penso nos tutores que percebem sinais de alteração neurológica em seus pets, imagino muito dessa mesma dor”, diz Higor. “É preciso acolher esse sofrimento, tanto na clínica humana quanto na veterinária. Porque o afeto é o mesmo, e a perda também. Quem ama um ser vivo e cuida dele até o fim passa por uma dor que merece ser acolhida. Não podemos colocar medida no sofrimento de ninguém.”
Em um levantamento conduzido por Elidia e feito com tutores de cães com disfunção cognitiva, observou-se que sintomas como desorientação, alterações no sono e ansiedade do animal impactam diretamente o bem-estar emocional de quem cuida. Muitos relataram sobrecarga, desgaste físico e queda na qualidade de vida, especialmente quando não há rede de apoio.
Esses dados convergem com os achados de um estudo coordenado pela pesquisadora Mary Beth Spitznagel, da Kent State University, nos Estados Unidos.
A pesquisa demonstrou que tutores de animais com doenças crônicas ou terminais apresentam níveis significativamente mais altos de estresse, sintomas de depressão, ansiedade e pior qualidade de vida quando comparados a tutores de animais saudáveis. De acordo com os dados, o desgaste emocional pode influenciar, inclusive, a relação com os profissionais de saúde, elevando as tensões nas consultas e aumentando o risco de conflitos, uma dimensão ainda pouco reconhecida, mas com impacto direto na prática clínica veterinária.
Como psicóloga, sei que o que adoece não é apenas o corpo do animal, mas também o vínculo. Quando esse laço começa a se desfazer por causa de uma doença neurodegenerativa, o tutor não sofre só pelo que está vendo, mas pelo que está deixando de viver: os rituais de afeto, os reconhecimentos silenciosos, a companhia que antes preenchia. É uma dor que não tem linguagem exata, mas pesa no corpo, na rotina, no silêncio da casa. E é por isso que reconhecer esse sofrimento importa tanto quanto cuidar do sintoma, porque vínculos também precisam de cuidado.
Cuidar de um pet com Síndrome da Disfunção Cognitiva exige mais do que afeto. Exige preparo, escuta, paciência e uma rede de apoio que reconheça a complexidade desse cuidado. Não se trata apenas de acompanhar um envelhecimento natural, mas de lidar com perdas graduais, mudanças comportamentais desafiadoras e decisões difíceis. A saúde mental de quem cuida também importa, e precisa ser parte ativa do plano de cuidado.
Se você é tutor e está enfrentando esse tipo de desafio, ou é profissional, é essencial aprofundar-se no acolhimento de famílias com pets em processos degenerativos, e saber que não precisa lidar com isso sozinho. Há caminhos de suporte e formação disponíveis para quem deseja cuidar com mais consciência e menos sobrecarga.
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